Incrível é que entre uma noitada e outra, naquele calor insuportável, ele tivesse disposição para ler Proust. Não lembro de uma única vez que o tivesse encontrado sem um livro, ou a falar sobre o livro que estava a ler. A quem ele poderia dizer sobre suas leituras e mais sobre o cinema, outra paixão, considerada vocação nos primeiros anos. Restou um documentário perdido sobre a cidade, Curitiba Hoje, pensado e filmado cheio de referências e citações dos mestres. Um fotógrafo italiano que se dizia assistente de direção de Rossellini. E não era Rossellini seu maior gosto, era Fellini, foi Bergman, foi John Ford, foi Glauber, foi Godard e foi Visconti e Kurosawa e todos os que vimos dezenas de vezes. Foi quando o conheci, início dos anos 60, no Centro Experimental de Cinema, quando ainda acreditávamos que a arte mudaria o mundo, traria a liberdade e nos daria a contemporaneidade do mundo.
O cinema ficou no passado. Nem a arte, nem a política, todas as tentativas foram fracassadas. Eu mudei-me para o interior na barra pesada dos desesperados que já não acreditavam em luta pacífica. Só nos vimos quando voltei da prisão. Nessa época ele estava a escrever em jornais sobre outro assunto, tão díspar, que dominava sua inteligência: o futebol. Mais que o futebol, o Fluminense, a paixão mais duradoura, que sobreviveu a tudo. Seu texto era invejável e acredito que é o melhor que tivemos em nossa aldeia. O futebol era o tema que o ligava ao cotidiano real de uma gente que não estava interessada em Jean Paul Sartre, Freud, ou às variáveis dos marxismos que discutíamos nos círculos ínfimos de interessados.
Escreveu muito sobre o jogo e acho que foi um desperdício para tanto conhecimento, tanta literatura, tanta arte, tanta filosofia. Tanto ele tinha a dizer, dono de uma linguagem rica, em texto enxuto, nenhuma palavra a mais, para descrever jogadas, táticas e estratégias para a Seleção que não cumpriu os vaticínios e sempre o contrariou.
Lembrei de suas divagações sobre Garcia Marques e o barroco latino-americano em tertúlia literária com o então presidente José Sarney, enquanto o país afundava em crise de inflação estratosférica, o ministério inteiro na porta da biblioteca do Palácio Alvorada, aflito, a esperar que terminasse a conversa para tratar de um novo plano para salvar a economia do país. Nossa temporada no Paraguai, meses de campanha para eleger presidentes, madrugadas intermináveis no bar do Hotel Guarany ou nas boates pobres de cantoras gordas, suadas, a entoar dramáticos boleros. Muito uísque falsificado, uma discussão com uma prostituta argentina sobre a aversão de Borges pelo tango, e pó, muito pó, digressões sobre o fumo paraguaio, a visita de amigos, Coski, Tataio, Sabino, porres e a ressaca em reuniões com o futuro presidente e seu estafe, todos circunspectos, a aguardar uma formulação que fingíamos ter e não tínhamos, criávamos na hora.
CARLOS ALBERTO PESSOA - "Nego Pessoa"
Wasyl Stuparyk ou Basílio Junior
Wasyl Stuparyk ou Basílio Junior